terça-feira, 30 de agosto de 2016

EU LEIO




“Perto do coração selvagem”
 Clarice Lispector

Primeiro romance da autora.
Depois de ler a biografia de Clarice interessei-me por seus romances.
Hoje no fim de tarde, só em casa, no silêncio da varanda, assentei-me no almofadão e com os pés livres da sandália abri o livro.
O vento completava o prazer do momento. .
Lá longe o latido de um cão, uma voz, uma vassoura a varrer...
Mas logo nada mais eu percebia, entrava no mundo profundo de Joana.
O mundo de Joana me leva ao meu, porque sem mesmo notar, passo do dela para o meu também profundo mundo...
Muitas vezes ao terminar a leitura de uma página eu precisei retornar ao topo, ou então parar um instante e retornar a leitura. Clarice faz isto com a gente, nos provoca, mexe com nosso sentir e pensar.
Escutei a campainha tocar e não atendi. Fui um pouco Joana...
Assim é quando se penetra no coração selvagem e liberto de Joana ou seria da Clarice?

Joyce Pianchão

domingo, 28 de agosto de 2016

DELICIOSAMENTE VIVIDO



Domingo

Inverno, é final de agosto, tenho motivo para não ser muito simpatizante deste mês, ele está no fim, nem tão ruim foi.
O dia lindo de céu azul convidou-me para uma caminhada. Mais de duas semanas sem caminhar, coisas do mês de agosto...
E lá fui eu, como sempre percebendo a graça de viver, de ver o amanhecer ensolarado, o vento, as pessoas, os cachorros, as árvores que pareciam estar ali para enfeitar os meus passos.
Meus pés caminhavam e meus pensamentos voavam soltos. O corpo se fazendo leve.
Uma triste notícia eu recebi à tarde e por um instante em silêncio fiquei.
E se o fim para todos um dia chega, para mim também chegará, isto é certo. Não devo, porém desperdiçar a vida pensando, quando eu não mais a tiver.
 O fim de tarde me levou para comprar um livro, mais um romance de Clarice Lispector. No café eu parei a esperar pela hora de assistir mais um filme de Woody Allen: Café Society.
Assim foi o domingo: apreciado, refletido e vivido. Deliciosamente vivido.

Joyce Pianchão

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

OS OLHOS



Acordaram...
Não foi simplesmente um abrir de olhos.
Eles se abriram como todos os dias ao amanhecer, é fato, mas despertaram de um jeito diferente, estavam diferentes, queriam ser diferentes.
E saíram e foram pelas ruas olhando. Entraram no prédio e sorriram. Sorriram também no elevador, para a secretaria da médica.
Com a médica foi diferente, eles fixaram nela e viram outros olhos que também sorriam e que também queriam ser diferentes, queriam fazer diferente e fizeram...
Tanto que fizeram que os olhos que ali chegaram saíram com brilho, um brilho que não trouxeram, mas saíram com ele e sorriam mais ainda.
Os olhos entraram no táxi e encontraram outros olhos, vividos, experientes, cheios de histórias. Não eram olhos cansados pela idade, não eram. Contou para os olhos atentos que entraram, a sua vida passada, fatos surpreendentes que deixaram os olhos que escutavam abertos e espantados, nem piscavam. Mas então, os olhos que narravam tudo que já haviam visto, contaram também o presente, o jeito novo que encontraram de ver as coisas e as pessoas, a eles próprios. E aconteceu num curto espaço de tempo, troca de confidências. Houve até compartilhamento de dicas culinárias, cuidados físicos, reflexões de vida. Parece que o caminho se alongou ou o tempo parou, alguma camaradagem aconteceu para aqueles dois pares de olhos que conversavam animadamente. Os olhos brilhantes saiam do carro surpresos, agradecidos e revigorados.  Sorriam mais ainda...
Os olhos retornaram a casa e encontraram dois jovens olhos ternos, que perceberam os olhos que chegavam diferentes, brilhantes, agradecidos, revigorados.
Sorriram-se com ternura.
A dona dos olhos que amanheceram diferentes percebeu que tudo depende de como decidimos olhar.

Joyce Pianchão

sábado, 20 de agosto de 2016

ENQUANTO A CASA DORME



Silêncio, a casa ainda dorme e a cidade também, as pessoas...
Eu me desperto e olho a claridade que atravessa a cortina, no canto direito da janela que me faz crer que já é dia, mas confiro as horas no relógio.  Na cabeça a agenda avisa a programação do dia. O corpo se levanta. Ao banheiro, à cozinha, pelo caminho observo as coisas, elas também dormem no mesmo lugar que as deixei. .O preparo do café. Antes, porém a água faz o corpo acordar, tomo dois copos, uma fruta e o cheiro do café no coador me desperta para a vida enfim. Ligo o rádio bem baixinho, ainda respeitando o sono da casa. O mundo já faz as notícias do dia e a música suaviza o coração com algum estrago do dia anterior. Para terminar o ritual matutino na cozinha, um cálice de vinho, bom para o coração anunciar compassadamente que há vida no corpo. Corpo que recebe no banho a água, que quando escorre da cabeça aos pés limpa com tanto vigor, com tanto prazer, que de repente me vejo agradecendo aos céus o sublime momento.
 E então eu me visto e pronta estou para enfrentar ou saborear o dia. Depende de como a casa despertar.
A casa acorda, ouço vozes, portas e janelas se abrem. Começa o dia! 
Enfrentar ou saborear...

Joyce Pianchão

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

INVASÃO



Sua casa, seu recanto, seu!
Interfone, portaria, campainha, olho mágico, portas fechadas. Proteção e segurança. E dentro você tudo decide, o que fazer ou nada fazer. Acorda, se arruma, come, se movimenta, planeja, direciona o seu dia, dorme no seu horário e tudo acontece na rotina por você estabelecida.  Se um dia tudo sai da rotina a decisão é sua, sua!
Até que de repente, batem a sua porta, comunicam o que vai acontecer e você não tem tempo de recusar, de não concordar.  Não querem saber da sua rotina, dos seus planos, você não decide nada, lhe tiram a autoridade.
 No máximo, com sorte, recebe um olhar: Coitada! (melhor seria os olhos nada dizerem).
Você é invadida por uma reforma no prédio. E você é parte dele. Decidem então entrar, decidiram por você, são várias pessoas que decidem o que fazer, aquelas que têm mais poder que você, que decidem quando fizer, como fazer. E desarrumam a casa e você.
 Não somos nada, donos de nada! Nem da própria vida somos donos. Das coisas muito menos! Não somos dono da nossa intimidade. Até nossos pensamentos adivinham. Sabem o que sentimos. Mas você não tem que pensar em você, tem que pensar na coletividade. No bem estar dos outros.
 Homens até então desconhecidos chegam cedo, conversam e entram e saem a todo instante. Abrem e fecham portas, deixam pegadas na sala, marcando o território, por hora deles. E discretamente, eles são discretos, você é que nesta situação se mostra intranquila. É preciso controle!  Invadem sua rotina, escutam sua conversa, pegam você de roupão de banho, percebem seu rosto ao acordar. Escutam a sua música no rádio, o seu programa na televisão, sentem o cheiro da sua comida no fogão. Observam você no telefone, no computador, conversando com o filho. Só faltam ler o seu livro.
E você então se torna intrusa no seu próprio espaço.
Decidem se haverá água, se você poderá usar o seu banheiro, se poderá fazer a sua comida, se poderá sair, a que horas irá dormir.  Desconsolada você abre a agenda e começa a desmarcar os compromissos. A invasão que deveria ser por cinco dias, já se prolonga por dez dias. Calma!
No final de cada dia lhe entregam a casa devassada. E você mais que depressa fecha as portas e tenta resgatar o que é seu, sentir de posse, nem que seja por algumas horas somente.
Chega o dia que eles dão por terminada a invasão, recolhem os apetrechos, entregam-lhe a casa e dizem carinhosamente: Desculpa aí qualquer coisa, viu? 
E você responde prontamente: Que nada! Eu só tenho a agradecer tudo o que fizeram e como fizeram.
E sorri um sorriso resignado, de volta ao que é seu, por hora...

Joyce Pianchão